quinta-feira, 11 de dezembro de 2014

Então misture tudo


Ontem ouvi uma frase que posso dizer que sintetiza tudo aquilo que eu não acredito.
“Você está misturando demais. É preciso escolher um caminho”.
Xi... Não vou fazer isso, não. Quero exatamente o contrário, na verdade.
A cada dia que passa desejo misturar mais, e isso acontece porque a cada dia que passa conheço mais coisas, vejo novos estilos, me deparo com artistas diferentes, e tudo isso me inspira. E, principalmente, a cada dia que passa tenho mais certeza de que tudo é permitido no meu trabalho: nele, posso fazer o que eu quiser.
Se eu me estabelecesse como uma cantora romântica, por exemplo, talvez fosse mais fácil, porque desta forma o público poderia esperar sempre o mesmo estilo, era satisfação garantida. Mas não posso me pautar por uma suposta decepção de quem gosta do som que faço hoje. E tenho certeza que este desapontamento vai rolar, cedo ou tarde, uma vez que eu não pretendo passar minha vida toda fazendo uma só coisa. Até poderia agir assim, porque o que faço agora me agrada bastante, mas tenho certeza de que vou querer e já quero outras coisas, também. 
Tenho vontade de gravar canções do Ednardo. Tenho vontade de colocar um pouco do rock, que é o meu berço, no meu trabalho. Tenho vontade de gravar uma canção do Caetano por disco. Não estou fechada à ideia de algum dia fazer um trabalho temático sobre religião. Não estou fechada a nada.
Soube que quando o grupo The The gravou o CD Hanky Panky os fãs não curtiram o fato de Matt Johnson, o dono do projeto, gravar canções de Hank Williams, ícone da música country. Este CD (maravilhoso, não deixem de ouvir), é tão incrível que fico pensando: vale a pena implicar com este trabalho só porque, a princípio, ele é diferente dos outros trabalhos da banda? Apenas escute! Não se ligue nos fatos (se é country, se não é, se não faz sentido, se Matt nunca deveria gravar um cantor norte-americano por ser tão radicalmente contra o imperialismo estadunidense). A música é boa, e isso é o que importa.
Já pensei em fazer um disco só de forró, algum dia. Mas também já pensei em gravar um disco com o que a MPB fez de mais roqueiro (“Fairy Tale Song”, “Chuck Berry Fields Forever” etc.). Isso é misturar “demais” para uma só pessoa? “Demais”, no sentido de excesso, para mim, não. De onde veio este “não pode”? Não consigo deixar de pensar que esta atitude deve atrapalhar não só a arte de quem pensa assim, mas sua vida inteira.
(E não consigo deixar de pensar que, inclusive, esta atitude tem muito a ver com a resistência aos tempos em que vivemos – tempos onde cada vez mais estamos quebrando barreiras e questionando exatamente o que está estabelecido, e falido. De fato, todas as nossas ações e falas são políticas...)
Gal Costa, uma cantora que adoro, já gravou de tudo e fez o que bem entendeu. Em 1969, então, não teve medo do experimentalismo – o que, segundo o pensamento de quem me deu o grande conselho de não misturar, talvez não fosse “bom” para a carreira dela –, e é uma das cantoras mais respeitadas do Brasil. Caetano, meu grande ídolo, o que seria dele se nunca ousasse gravar Beatles, ou formar a banda Cê, ou pintar no festival de 1967 com a guitarra distorcida dos Beat Boys para cantar “Alegria, alegria”? O que seria de nós sem o prazer de ouvirmos as doideiras impactantes de Araçá azul, disco que, dizem, teve 30% de devoluções por parte dos compradores? Será que Caê deveria ter permanecido nas canções, sem os recortes do disco citado (que, mais tarde, se tornou um dos álbuns mais emblemáticos e amados pelos fãs de Veloso?).
Música é tudo aquilo que desejarmos. Nela, fazemos o que bem entendemos. Bem disse o crítico de música Antonio Carlos Miguel: “Tem gente que quer só ouvir a coisa redondinha, pronta. Eu acho que música não tem que ter limite”.
Quando criança, às vezes ia à praia depois da aula e dizia à minha irmã: “olha que maravilha, aqui, se eu quiser, posso gritar muito alto!” E não gritava, que eu me lembre, porque só a sensação de poder fazer aquilo já era o máximo. Naquela praia vazia, eu não estaria desrespeitando ninguém, só me expressando, brincando. Coisa boa!
E acho que a arte é um pouco isso: uma praia vazia onde podemos brincar à vontade. Eu, que escrevo este texto, tenho bastante dificuldade em me soltar em vários momentos, mas sei que o que me impede é uma grande besteira, pois a praia está vazia, ninguém será desrespeitado por minhas iniciativas. Posso tocar um bolero, depois uma salsa, depois um baião e fechar com um blues. É problema meu, e, olha que coisa boa, ainda vai ter gente que irá se identificar e gostar (ainda que seja uma só pessoa, mas sempre há quem esteja na mesma sintonia que você).

Acho que tudo tem um motivo, e penso que o papel do senhor que me deu o conselho que jamais vou seguir era o de exatamente me fazer lembrar que os limites que me imponho são totalmente transponíveis. E que devo, cada vez mais, misturar e misturar, sem parar.

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